A relação da desigualdade social e a dinâmica política no Brasil.
- Bruno Roque
- 8 de dez. de 2021
- 5 min de leitura
A sombra da desigualdade social atravessa o tempo e insiste em perdurar no Brasil. Ainda hoje são evidentes discrepâncias entre a renda da menor parcela mais rica da população e a notável maioria mais pobre. Essa é uma herança de dinâmicas políticas que insistem em ser mais favoráveis à fração de detentores de capital, e consequentemente mais influentes no poder, em detrimento daqueles que resistem na sobrevivência.

A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD Contínua) - 2019, divulgada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), aponta que o 1% mais rico da população brasileira têm rendimento médio mensal 33,7 vezes maior que a metade mais pobre. Para efeito de comparação, o montante médio dos mais ricos chega a R$ 28.659, enquanto a população pobre recebe em média R$ 850, valor menor que o salário mínimo naciona
A desigualdade social é indiscutivelmente uma hereditariedade em nossa sociedade, que permanece com auxílio de uma insistente política que historicamente está a mercê daqueles que concentram a maior parte do capital, e por isso agem deliberadamente para manter-se onde estão, a fim de impedir movimentações rumo a equidade social. A concentração no topo nunca teve mudança significativa, sempre permaneceu em patamares altos, mesmo com variáveis que atingiam pequenos picos e vales. Os momentos anteriores à Ditadura Militar, iniciada com o Golpe de 1964, já esboçavam, em medidas perceptíveis, as discrepâncias sociais do país. Dutra governou com reflexos do Estado Novo de Vargas, congelou salários e suprimiu lutas sociais e greves. JK passou longe de vislumbrar a fuga da desigualdade, não dando importância às discussões sobre concentração fundiária, por exemplo. Enfim, Jânio Quadros e João Goulart mostraram simpatia por temas como reforma agrária, e afrouxaram as liberdades de sindicatos e movimentos sociais, mas não a ponto de agirem com políticas que de fato abalassem a disparidade social.
A ruptura democrática da Ditadura acirrou as diferenças, aumentando o acúmulo de capital na mão de poucos. Neste momento as políticas passam a deliberadamente prejudicar os mais pobres, segundo Eduardo Galeano em As Veias Abertas da América Latina (1971): “Era preciso proibir greves, destruir os sindicatos e os partidos, encarcerar, torturar, matar e apequenar pela violência os salários dos operários, de modo que pudesse ser contida, à custa da maior pobreza dos pobres, a vertigem da inflação”. Houve empenho em fragilizar setores de defesa das minorias e trabalhadores, um impulso para o aumento da desigualdade, pois o enfraquecimento das lutas e da oposição garantiam atitudes de austeridade sem críticas e contrapontos.
O regime militar também usufruiu muito do crédito estrangeiro, como um modo de cumprir seus objetivos de investimento em nosso parque industrial e realização de obras de infraestrutura, que eventualmente possibilitaram maior oferta de emprego. Porém, esta dependência deu brechas para efeitos poderosos de crises externas. Tensões no mercado petrolífero internacional, em 1973, atingiram em cheio o país, que se deparou com aumentos nos juros dos empréstimos feitos no exterior. O entreguismo aos estrangeiros também cristalizou a noção de que as políticas brasileiras davam prioridade aos estratos abastados, mais uma vez com prejuízo ao interesse dos mais pobres. Para Galeano “A ditadura acenava para os capitalistas estrangeiros oferecendo o país como os proxenetas oferecem uma mulher (...)”.
O chamado “Milagre Econômico" da Ditadura Militar vem principalmente às custas dessa relação com o capital estrangeiro. De fato, os olhos da população brilhavam, com uma propaganda massiva e extraordinária das grandes obras do governo. Por outro lado, a repressão e censura à imprensa cegavam um por um dos brasileiros. O deslumbre pelo momento “milagroso” causou um poderoso êxodo rural, no qual cerca de 10 milhões de pessoas migraram para as cidades, oferecendo mão de obra desqualificada, e por isso mal paga, que vivenciou o “apartheid urbano” brasileiro, inflando o contingente populacional das periferias e a demanda por infraestrutura urbana.
Outro exemplo de movimentação política disfarçada de ação pelos mais pobres, mas que na verdade era uma estratégia de transferência de recursos para os mais ricos e principalmente combustível para o lucro, é o Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS), que existe até hoje, e foi adotado em 1966 durante o governo do marechal Castelo Branco. Os recursos arrecadados eram encaminhados para o sistema de financiamento da habitação, com parte expressiva destinada a bancos privados, responsáveis por empréstimos imobiliários, que de maneira nenhuma eram acessíveis a toda população, ficando nas mãos de setores mais ricos, como construtoras, que por fim eram indiretamente subsidiados pelo Estado no financiamento de seus negócios.
Já próximos da reabertura democrática observamos, finalmente, um discurso com promessas mais explícitas de combate à desigualdade, no II Plano Nacional de Desenvolvimento (PND) do governo do general Ernesto Geisel. Porém, era evidente a estratégia retórica de abordagem, frente ao momento de ebulição de movimentos grevistas e pressões sociais. Por fim, deixamos o momento obscuro da Ditadura, mas herdamos fantasmas da acirrada estratificação social e crises que assombraram os anos seguintes.
Mais uma vez vemos uma reestruturação da sociedade sem a presença, de fato, dos mais pobres, tendo apenas que contar com supostos representantes da classe política. Como sempre, os rumos são decididos por aqueles mais próximos do poder, ou seja, do capital. A Constituição Cidadã de 1988 finalmente esboça uma possível demanda por inclusão, presente pelo menos no texto. É evidente a manutenção dos privilégios e permanência da disparidade social.
Elucidações sobre o futuro da busca por equiparação social insistem em qualificar-se como pessimistas, pois não foge de nossas perspectivas a presença de um jogo de poder quase impossível de ser vencido. Cenários como o mais recente, descrito no início deste texto, são nossa realidade, mesmo após experiências de inclusão, como as dos anos 1990 e 2000. A tentativa recente de tornar a igualdade social o ponto central da dinâmica política, trouxe um lampejo de esperança. Porém, muito mais ligada a uma inclusão das classes mais pobres nos estratos seguintes da hierarquização social. Essa ascensão foi um movimento útil, mas não suficiente. A estratégia de fato balançou a estrutura rígida da pirâmide social, mas os abalos não atingiram a ponta, apenas causaram irritação. Efeito expresso no Golpe de 2016 contra a presidente Dilma Rousseff.

Nossa estratégia? Antes parecia ser o combate a esses privilégios, criar o que Pedro Herculano Guimarães Ferreira de Souza chama de “receita inédita para redução da desigualdade”, em sua tese de doutorado: "Uma história política da desigualdade no Brasil", a fim de traçar um necessário plano de redistribuição e extinção da concentração de renda. Mas, antes de tudo, precisamos, hoje, tirar do poder aqueles que impossibilitam qualquer esperança no combate ao desequilíbrio social.
Pensar a desigualdade hoje é uma tarefa mais sensível, que beira a melancolia. É como vivenciar as estratégias do passado, ver o imperdoável acontecendo na nossa frente. Experiências como a CPI da Pandemia, que acontece ainda hoje em Brasília, nos mostram realidades que soam como o retrato de mal gosto da atuação pública, que ainda age em prol do 1% mais rico. Um espetáculo, com interpretações do escárnio feito às custas dos mais pobres, dos milhares de brasileiros que se foram, com atores reais que ambicionam vantagens e privilégios, mesmo que já vivam no conforto da concentração no topo.
Comments